Pular para o conteúdo principal

(III / V) Bradley - Conferência I "A substância da tragédia shakespeariana"

BRADLEY, A. C. A Tragédia Shakesperiana. Trad. Alexandre Feitosa Rosas. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 3-27. Conferência I – A substância da tragédia shakespeariana.

(3)

Sobre o herói trágico:

Características em comum no herói trágico shakespeariano:

São “homens de alta posição” ou de importância pública, cujos atos e sofrimentos são de natureza extraordinária. Possuem natureza excepcional, elevando-se acima da média humana. Isto não seria o mesmo que excentricidade ou modelo de perfeição, embora estas características possam existir de modo secundário no caráter da personagem principal. São feitos da mesma matéria que as pessoas normais, porém apresentam de forma intensificada qualquer desejo ou paixão, conferindo-lhes uma força excepcional.

Os heróis shakespearianos são marcados pela parcialidade, têm tendência a seguir determinada direção específica. Um traço trágico fundamental: identificam-se inteiramente com seu único interesse, que junto às outras características faz-se perceber o pleno poder da alma humana e do conflito nela.

Comparação do personagem trágico com os personagens de outros gêneros: percebe-se, por exemplo, que o personagem no drama comum não se atinge as mesmas elevações do personagem trágico (p. 14/15).

O erro do herói:

Juntamente com outros fatores, o erro do herói é a causa de sua ruína. Ocorre por ação ou omissão, causado pela própria grandeza da personagem. A imperfeição ou o erro fatal está sempre presente em Shakespeare. Na maioria dos casos o erro não se dá por uma violação consciente de virtude, e em outros especificamente pela completa convicção de virtude (por exemplo, Bruto e Otelo). Poder-se-ia apontar duas exceções: Ricardo e Macbeth, ambos fazem o que eles próprios entendem como baixo e vil, e é importante ressaltar que Shakespeare admite este tipo de herói[1].

No caso destes heróis ainda se pode perceber, porém, grandeza que renda admiração. Ricardo teria um poder que suscita assombro e uma coragem que causa admiração. Macbeth possui grandeza similar, acrescida de uma consciência aterradora e confrangedora em suas advertências e condenações que revelam de forma intensa o seu tormento interno. São capazes de despertar compaixão, ainda que despertem um desejo pela sua derrota (p. 16):

O herói trágico de Shakespeare, portanto, não tem de ser “bom”, apesar de em geral ser “bom” e, portanto, inspirar imediata compaixão quando em erro. Mas é necessário que demonstre tanta grandeza que em seu erro e queda possamos ter viva consciência das possibilidades da natureza humana.

O trágico de Shakespeare não se apresenta como deprimente. Nas tragédias não se percebe o homem como fraco, vil e pequeno. Pode-se perceber a grandeza do herói trágico, e por vezes presente em certa medida noutras personagens, permite o “cerne da impressão trágica”, que seria (p. 16):

Esse sentimento central é a sensação de desperdício. Em Shakespeare, sob qualquer ângulo que se olhe, a piedade e o terror suscitados pelo enredo trágico parecem ora se unir a uma profunda sensação de tristeza e mistério, ora fundir-se nessa sensação, que se deve ao sentimento de desperdício.

O sentimento de desperdício despertado pela tragédia permite perceber a grandeza humana, capaz de destruir a si mesma. O fenômeno trágico apresentaria então o mistério do próprio mundo humano, para além dos limites da tragédia. Na verdade, a tragédia seria a forma típica deste mistério ao apresentar a grandeza da alma oprimida do herói, em conflito e massacrada, pelos próprios atos humanos. É da existência humana que toda a sua grandeza, representada pelo herói, leve-a ao seu final trágico.

A tragédia, portanto, carrega o mistério da dicotomia da mais alta beleza do homem, à sua forma mais horrenda. E assim, faz perceber intensamente o valor daquilo que se está sendo desperdiçando.



[1] Importante também ressaltar, conforme nota do próprio autor, que esta não seria a mesma identificação do herói trágico trazida por Aristóteles e pela tradição dramática grega.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Kalé Tyche!

"A Fernanda me falou faz pouco tempo da vontade que tinha de iniciar um blog. Acreditem ou não, o único receio dela era não ter o que escrever ou não contribuir tão bem quanto poderia. Tudo bem, perfeccionismo faz parte do charme dela, é o que mantém sua inteligência em níveis aceitáveis de modéstia, então não vamos mexer nisso. Para nossa alegria, contudo, consegui convencê-la do contrário. Foi a maneira que encontrei de estimulá-la a apresentar-se ao espaço público e emitir suas opiniões, dividir suas leituras, suas pesquisas, suas idéias. Ela diz que o nome do blog, algo como “Jardim da Discípula”, é uma homenagem a mim e a todos os seus outros mestres, mas tenho lá as minhas dúvidas sobre a veracidade dessa explicação. Para mim, o que o nome significa é que ela tem cultivado dentro de si, como belas flores, várias idéias próprias, regadas continuamente, tratadas com carinho e cuidado, que agora querem abrir-se e mostrar-se, para polinizar outras mentes. Ela está abrindo ao púb

( I / IV) "Hamlet and Orestes", de Jan Kott

Hamlet and Orestes Hamlet and Orestes Bibliografia: KOTT, J. Hamlet and Orestes . Trad. Boleslaw Taborski. In. Publications of the Language Association of America . Vol. 82, No. 5, 1967, p. 303-313. [1] Esta será uma série composta de quatro postagens a respeito do artigo “Hamlet and Orestes”, escrito pelo teórico e crítico polonês de teatro Jan Kott. A divisão das partes aqui usada é a que foi feita pelo próprio autor, nas quais discute: (I) A tragédia como situação, os mitos sob a leitura de Lévi-Strauss, os conjuntos que a tragédia contém, a liberdade e o destino do herói trágico; (II) A comparação das histórias que antecederam as tragédias da Orestéia e de Hamlet, as diferentes versões de Hamlet e de Orestes, a estrutura básica do enredo de Orestes e de Hamlet, as previsões duplas e a relação entre passado, presente e futuro nas tragédias; (III) A dupla imagem do rei na tragédia – como parte interna e externa da sociedade - e a movimentação dos heróis trágicos – as personage

A DUPLA MOTIVAÇÃO ENTRE ÁGAMÊMNON E ZEUS NO SACRIFÍCIO DE IFIGÊNIA

Segue abaixo o meu ensaio produzido para a matéria, Mito e Engano: a Ate na Ilíada, acompanhada na pós-graduação de Letras Clássicas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. INTRODUÇÃO No presente trabalho pretendemos analisar com brevidade o fenômeno da dupla motivação presente nas ações de Agamêmnon na tragédia de mesmo nome, primeira da trilogia da Orestéia, de Ésquilo. A passagem referente ao presságio das águias e da profecia reveladora de Calcas, em conjunto com os contornos do sacrifício de Ifigênia, tal como apresentados por Ésquilo, servirão de fundo para o estudo deste fenômeno construído na tensão entre determinação divina e autonomia das ações humanas. Agamêmnon, general do exército e sob o titulo do rei dos reis, reúne os gregos para a guerra contra Tróia. Está sob o juramento de seu cetro e deve seguir com a Justiça de Zeus pela vingança contra Páris e todo o povo de Príamo. Contudo se encontra incapaz de prosseguir, preso no porto de Áulida. Ártemi