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( I / IV) "Hamlet and Orestes", de Jan Kott

Hamlet and OrestesHamlet and Orestes

Bibliografia: KOTT, J. Hamlet and Orestes. Trad. Boleslaw Taborski. In. Publications of the Language Association of America. Vol. 82, No. 5, 1967, p. 303-313.[1]

Esta será uma série composta de quatro postagens a respeito do artigo “Hamlet and Orestes”, escrito pelo teórico e crítico polonês de teatro Jan Kott. A divisão das partes aqui usada é a que foi feita pelo próprio autor, nas quais discute: (I) A tragédia como situação, os mitos sob a leitura de Lévi-Strauss, os conjuntos que a tragédia contém, a liberdade e o destino do herói trágico; (II) A comparação das histórias que antecederam as tragédias da Orestéia e de Hamlet, as diferentes versões de Hamlet e de Orestes, a estrutura básica do enredo de Orestes e de Hamlet, as previsões duplas e a relação entre passado, presente e futuro nas tragédias; (III) A dupla imagem do rei na tragédia – como parte interna e externa da sociedade - e a movimentação dos heróis trágicos – as personagens de Hamlet em Shakespeare, e as personagens da Orestéia em Ésquilo, em Sófocles e em Eurípedes; e (IV) O tempo histórico e o tempo meta-histórico da tragédia, o tempo do expectador e os tempos continentes no enredo, e as possibilidades nas diferentes versões do mesmo modelo trágico.

(I)

Tragédias como situações (situations):

As tragédias são, em princípio, situações, que de forma geral podem ser descritas em poucas palavras. A situação, em um sentido teatral, é a relação do herói com o mundo e as demais personagens. A situação da tragédia existe no tempo presente, mas sempre precedida de um passado que a define e anterior a um futuro já previsto.

Exemplo:

A situação de Édipo é a do homem que matou seu pai e casou-se com sua mãe, e seu tempo presente na tragédia é enfrentar seu próprio passado como se fosse o de outro. A situação de Antígona é estabelecida pela decisão de enterrar seu irmão, quebrando assim as leis da cidade. Uma decisão que inicia o próprio enredo trágico. A situação de Orestes é o destino de vingar a morte de seu pai assassinando os culpados, que são sua própria mãe e seu padrasto. E suas peças iniciam-se com sua chegada a Mecenas.

A situação é imposta de fora ao herói trágico e é independente de seu caráter. É a situação que define a tragédia, e não o caráter da personagem principal. Assim como a situação independe do diálogo, que apenas a informa. Da mesma forma a situação é anterior à tragédia, e cada tragédia parece ser uma realização dramática possível da situação. Enfim, situações trágicas estão em um sentido final e exemplar que podem ser descritas em poucos termos, formando estruturas trágicas básicas ou modelos. E cada tragédia seria uma realização deste modelo.

Mitos precedem as tragédias[2]:

O mito pode ser uma história transmitida ou verbalmente, ou por via da escrita, ou de sinais visuais, mas não é definido por isto. Ele possui sua própria estrutura inalterável independente de sua forma de apresentação e, portanto, não pode ser compreendido a partir da análise estrutural da forma em que se realiza. O mito existe fora e acima das suas formas de expressão, assim como a tragédia existe fora e acima do diálogo.

O mito possui tanto um tempo histórico quanto um meta-histórico, ou seja, possui tanto um tempo circunstancial quanto uma validade universal. É capaz de ser transmitido e traduzido para outras línguas e civilizações. Já uma análise estrutural do mito leva à economia de interpretação e excluir pressupostos metafísicos, em uma tentativa de construir o modelo e definir suas realizações variáveis.

Na maioria das tragédias gregas, nas de Shakespeare e nas de Racine, o futuro, ou a resolução da ação, é sempre de certa forma previsto[3]. Seja de maneira direta, por meio dos cantos do coro, dos augúrios, oráculos ou sonhos proféticos; ou indiretamente, pela própria configuração do conflito de tal maneira que nos permite antever a sua resolução. Fala-se de destino e necessidade como constantes fatores do trágico. O futuro paira sobre os heróis trágicos, sempre conscientes disso mais que qualquer outra personagem dramática. As previsões (forecasts)nas tragédias tornam-se realidade ou não de forma diferente do esperado.

Os conjuntos que a tragédia contém e a liberdade do herói:

Todas as tragédias podem ser definidas pela formação de vários conjuntos (several sets): o conjunto de personagens, o conjunto de ações e o conjunto de acontecimentos. É possível destacar um elemento do conjunto e tudo o que resta se torna um conjunto complementar (complementary set). Ou seja, pode-se estabelecer a partir do herói trágico um conjunto complementar de “outros” (others) em relação a ele. Como “outros” em relação a Orestes ou a Hamlet. O destino, segundo Georg Lukacs, “é o que cai sobre o homem vindo de fora” [4], assim o conjunto complementar é seu destino, e sua liberdade é somente liberdade em relação ao conjunto complementar de “outros”.

Esta liberdade é definida como decisões, gestos e ações independente das ações dos outros, conduzidas por sua própria conta. Dessa forma, “necessidade” e “liberdade” constituem a relação entre o herói e o conjunto complementar. Um conjunto complementar pode ser formado tanto por deuses quanto por outras personagens e suas ações, e se constrói não apenas para a personagem principal da tragédia, como Hamlet, Orestes ou Édipo, mas também existe para Ofélia, Clitemnestra ou Creonte. Os “outros” também formam seu próprio destino dramático.

Disso se segue que podem existir pelo menos duas previsões, uma para o conjunto em seu todo, e outra para o herói, para os protagonistas ou mesmo para figurantes. E elas podem ser diferentes e contraditórias entre si. A Física distingue claramente a previsão para um conjunto e para um elemento, bem como para vários eventos e um evento particular. É possível determinar maior probabilidade em análises de um conjunto, mas esta probabilidade é mais próxima de zero tanto quanto se aproxima da análise de um único elemento[5].

Exemplo:

Em um jogo de roleta a probabilidade de a bola cair em um espaço vermelho é sempre de 50% em qualquer jogada, assim como a probabilidade para os espaços negros, contudo uma bola jamais caiu dezoito vezes seguidamente em espaços vermelhos, na história da roleta de Monte Carlo. Agora suponhamos um indivíduo que aposta dezessete rodadas consecutivas em casas pretas, e em todas elas a bola sempre cai em uma casa vermelha. Se agora, na décima oitava jogada, ele aposta novamente na casa preta e a bola cai, a despeito das estatísticas disponíveis, novamente na casa vermelha, não há nada fora do usual dentro da probabilidade do jogo, contudo esta seqüência acontece justamente com aquele jogador, pela primeira vez em Monte Carlo. É de se esperar que ele reclame justificadamente de uma malícia do destino.

A menos que ele seja um matemático, será difícil convencê-lo de que nesta ocasião três previsões diferentes ocorreram ao mesmo tempo: de que em todas as jogadas, até a décima oitava, a probabilidade de cair vermelho seja a mesma de 50%; de que para o jogo haverá uma revisão calculável de que em algum momento virão dezoito casas vermelhas, ou mais; e uma previsão sobre ele próprio, e não sobre a roleta, de que apostaria nas casas pretas dezoito vezes e perderia em todas. Esta última previsão tem, é claro, uma previsibilidade mínima.

A “malícia do destino” (the malice of fate) não é mais que a conjuntura de duas séries diferentes de probabilidades: uma para o mecanismo e o jogador, e a outra para o mundo e o herói trágico[6].



[1] Recomendação: Gilbert Murray's “Hamlet and Orestes” in his book, “The Classical Tradition in Poetry” (Cambridge, Mass., 1927).

[2] Utilização pelo autor do método de Lévi-Strauss de examinar os mitos (Anthropologie structurale) para analisar estes modelos trágicos.

[3] Utilização de forecast para referir-se à previsão sugerida na tragédia, como uma “previsão” em sentido neutro, tal como uma previsão metereológica, a qual estabelece uma conjectura que pode ser verdadeira ou falsa e ensejando certa probabilidade que pode ser calculada. Dessa forma, uma previsão falsa não deixa de ser uma previsão. Ela pode ser valorada de zero a um, sendo a necessidade (necessity) uma probabilidade igual ou próxima a um, e a improbabilidade uma previsão próxima ou igual a zero.

[4] "is what comes to man from outside”: Georg Lukacs, em "The Sociology of Modern Drama”, mencionado na página 304.

[5] Exemplos dados pelo autor (p. 305): “Se um soldado atira uma granada de mão, é possível calcular o diâmetro do círculo abrangido pelas suas farpas, mas não é possível prever o lugar onde qualquer estilhaço cairá. Podemos prever a taxa de mortalidade para qualquer região, mas não o tempo exato da morte de qualquer indivíduo. Em um microcosmo da previsão de uma série é determinada, mas a previsão para qualquer particular elétron – a previsão de seu lugar e do momento em que ele vai encontrar-se em um determinado lugar tem a probabilidade de realização próxima de zero”. Em inglês: “Physics clearly distinguishes a prediction for the set and for one element only, for a series of events and for a single event. If a soldier throws a hand grenade, it is possible to calculate the diameter of the circle covered by its splinters, but it is not possible to predict the place where any one splinter will fall. We can predict the mortality rate for any region, but not the precise time of any individual's death. In a microcosm the prediction for a series is deter-mined, but the prediction for any particular electron-a prediction of its place and the time when it will find itself in a given place-has the probability of realization close to zero”.

[6] Em outro exemplo (p.305): se há uma guerra, homens morrerão. E alguém será o último a morrer. A morte do último soldado é comumente sentida como trágica. A previsão de uma guerra contém do primeiro ao último homem morto, contudo para o indivíduo que morre por último na guerra a probabilidade é mínima. Sente-se esta morte como trágica, como se o destino fosse particularmente malicioso para com esta vítima. Novamente duas séries de probabilidade se confrontam: àquela para a guerra e àquela para um indivíduo determinado. É tanto uma situação quanto uma oposição trágica. Em inglês: “If there is a war and men die in it, someone has to die last. The death of the last soldier is often felt by us as tragic. The prediction for war envisages the deaths of the first and the last soldier. But for an individual soldier the prediction that it is he who will die last in the war has infinitesimal probability. Hence the feeling of tragedy in the case of the last victim, as if fate has been particularly malicious to him. Again two different series of probabilities have clashed: that for the war and that for an individual who has a Christian name and a surname. It is both a tragic situation and a tragic opposition”.


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