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MacIntyre - Depois da Virtude. Cap. 10 p. 209-224

MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Trad. Jussara Simões. Bauru/SP: EDUSC, 2001, p. 209-224. Capítulo 10 – As virtudes nas sociedades heróicas.

Resumo: Aborda a influência das estruturas morais das narrativas heróicas sobre a sociedade moderna. Para isso trata da influência do épico e da saga sobre as sociedades posteriores, as características das sociedades heróicas e a relação que seus indivíduos tinham com as virtudes, considerando a indissociabilidade entre qualidades necessárias ao exercício de um papel e a própria estrutura social. Explora também a forma como as personagens heróicas percebem a si próprias e a condição humana, o mundo e a realidade em que vivem, as relações sociais, papéis e responsabilidades, bem como a relação com forças independentes e para além de seu controle, tais como o destino e a morte. Ao final, conclui que a compreensão das sociedades heróicas é parte da compreensão da própria sociedade moderna, havendo que examinar os estágios intermediários de estruturas morais entre um e outro.

Resumo Analítico/Esquema:

  1. Nas culturas em que o pensamento e a ação moral são estruturados a partir de alguma versão do “esquema clássico”, as histórias oriundas de sua própria era heróica desaparecida são seu principal meio de educação moral;
    1. Independente de serem indícios históricos confiáveis, é inegável que estas narrativas formam memória histórica destes povos clássicos;
    2. Fornecem fundamento moral para os debates clássicos, ainda que por meio de uma ordem moral total ou parcialmente superada (mas de certo que influente sobre eles), e um contraste esclarecedor com o presente;
    3. A compreensão das sociedades clássicas passa pela compreensão deste esquema de valores morais das sociedades heróicas;
    4. Exemplos: Atenas do século VI e os poemas homéricos; Islandeses do século XIII e a saga dos antecedentes nórdicos em 930 d.C.; e monges irlandeses do mosteiro de Clonmacnoise (século XII) que escreveram o Lebor na Huidre.
  2. As características principais das sociedades heróicas:
    1. (Finley) “Os valores fundamentais das sociedades homéricas eram aceitos sem questionamento, pré-determinados, bem como o lugar do homem na sociedade, os privilégios e dos deveres provenientes de seus status”;
    2. Em uma ordem bem definida em seus papeis e status o indivíduo percebe quem é por meio do conhecimento de seu papel, delineado e permitido pelas principais estruturas do período, as do parentesco e as do lar, bem como percebe o que deve e o que lhe é devido em relação aos outros ocupantes de outros papeis;
    3. Não haveria diferenciação entre dever moral e dever material; (exemplo:) seja em grego (dein) ou em anglo-saxão (ahte), enquanto em islandês, dever moral une-se a “ser parente de” (skyldr);
    4. Há uma compreensão clara do conjunto de atividades necessárias ou desnecessárias para o cumprimento do dever, e do padrão em que este dever deve ser realizado. Nas sociedades heróicas, um homem é o que ele faz – seu papel é sua identidade;
    5. (Frankël) “O homem e seus atos tornam-se idênticos, e ele se insere total e adequadamente neles; ele não tem complexidades ocultas... Nos [épicos] relatos factuais do que os homens fazem e dizem, tudo o que os homens são, é expresso, porque não são nada além daquilo o que fazem, dizem e sofrem”.
  3. As virtudes nas narrativas heróicas – a ligação das sociedades heróicas com o conceito de coragem e suas virtudes aliadas, e os conceitos de amizade, destino e morte;
    1. A coragem, juntamente com outras virtudes conexas (ex.: astúcia), como a qualidade necessária para sustentar a família e a comunidade, bem como a manutenção da ordem pública;

i. A coragem, como qualidade de um individuo em que se pode confiar, e sua relação com a amizade;

    1. Os laços de amizade se estabelecem como laços de parentesco, ambos estabelecidos de forma bem definida;

i. A fidelidade como outra qualidade essencial à amizade, tal como ao parentesco, por garantir a disposição do amigo e a unidade familiar;

    1. As virtudes e a estrutura social nas sociedades heróicas são mutuamente indissociáveis – a moralidade e a estrutura são a mesma coisa. Questões normativas são questões sociais. Portanto, quando os heróis homéricos possuem o conhecimento do que fazer e como julgar, o fazem porque sabem seu papel, o que devem e o que lhes é devido, de acordo com a ordem social em que se inserem;
    2. O lugar do hóspede, previsto na ordem social arcaica, permite um papel ao estranho, àquele que vem de fora, concedendo-lhe identidade humana reconhecida;
    3. A relação dos gregos homéricos com a morte lhes permite a concepção da fragilidade da vida humana, e que é passageira da mesma forma para todos, independente do papel que ocupam;
    4. O destino é uma realidade social, e a percepção do destino é um papel social importante. O indivíduo, ao seguir suas ações de acordo com seu papel, segue também para o seu destino, bem como à morte;

i. Ligada ao destino, está a relação da derrota e da vitória, sendo que a vitória destaca-se como passageira (como a vida humana), e a derrota como o destino final de todos, sendo a última derrota, a morte;[1]

    1. A forma épica dos poemas e sagas heróicos retrata não só um tipo de narrativa, mas um tipo de vida. As virtudes heróicas, bem como suas vidas exemplares, só podem ser transmitidas e entendidas por meio de uma sucessão de fatos (incidentes) que os descrevem. Esta forma narrativa revela a compreensão dos povos heróicos de sua ordem social e de si próprios;

i. Contudo, os poemas e as sagas não são simples imagens refletidas a partir da sociedade heróica; o próprio poeta possui um entendimento que não é permitido aos personagens;

ii. Aos personagens de Homero não há vocabulário que permita qualquer percepção fora de sua própria sociedade e cultura. Somente dentro da estrutura de normas e preceitos eles são capazes de criar finalidades, nunca para além delas;

    1. A identidade nas sociedades heróicas consiste em particularidade e responsabilidade. Perante indivíduos específicos, imerso em um papel determinado, que o homem percebe sua função e a si próprio;
    2. O exercício das virtudes homéricas requer tanto um determinado tipo de ser humano quanto um determinado tipo de estrutura social;

i. Toda moralidade está amarrada socialmente, e a pretensão de universalidade da moralidade moderna, livre de particularidades, é uma ilusão;

ii. Não há como ser possuidor de virtudes, a não ser como parte de uma tradição herdada, em primeiro lugar, das sociedades heróicas;

  1. A morte, em Homero, é o destino final, última derrota. É o mal supremo, cuja única providencia possível, e essencial à integridade do morto e da família, são os ritos fúnebres:
    1. A condição de escravidão (Simone Weil), bem como de a pedinte, na Ilíada, é bem próxima à da morte. É ser um indivíduo fora da comunidade heróica, cuja vida está a disposição de outro. Tanto a morte, como a condição de escravo ou pedinte, são as condições do homem derrotado – e a derrota é o horizonte moral do homem homérico;
    2. No entanto, a derrota não é o horizonte moral do poeta. Na Ilíada ele vê que vencer também pode ser uma forma de perder. Na Gísla Saga Súrsonnar, o autor compreende uma verdade complementar à da Ilíada: de vez em quando, perder pode ser uma forma de vencer;[2]
  2. Duas afirmações principais sobre a estrutura moral das sociedades heróicas:
    1. Uma estrutura formada por um esquema conceitual de três elementos, interrelacionados: a concepção do que exige o papel social de cada indivíduo; a concepção das virtudes necessárias ao indivíduo para fazer o que seu papel exige; e a concepção da condição humana, frágil e passageira, vulnerável ao destino e à morte, de modo que ser virtuoso não é evitar a vulnerabilidade e a morte, e sim compreendê-la e conceder o que lhe é devido;
    2. A estrutura da forma narrativa épica ou de saga é a forma contida na própria moral dos indivíduos e na sua estrutura social coletiva;[3]
  3. Os personagens do épico não percebem diferenças entre o mundo humano e natural, a não ser aquele inserido nos conceitos que compõem sua visão de mundo. Eles não têm, por isso, duvidas de que a realidade é exatamente do modo como eles a representam para si próprios;
  4. Referência às idéias de Nietzsche p. 222-223.
  5. As sociedades heróicas são parte do passado compartilhado da sociedade moderna, e, portanto, de sua própria história. Essencial e necessário à compreensão da própria modernidade.
    1. (Marx) Os gregos estão para a modernidade civilizada na mesma proporção que a criança está para o adulto, por isso o poder que a poesia épica grega tem sobre a sociedade moderna ocidental;
    2. Para compreender melhor a ligação entre a sociedade moderna com as sociedades heróicas faz-se necessário explorar os estágios intermediários da ordem social e moral, os quais questionarão duas crenças fundamentais da era heróica:

i. Se a vida humana como um todo pode ser interpretada em termos de vitória e derrota, e em que consiste vencer e perder;

ii. E se as formas narrativas de transmitir conhecimento devem ser substituídas por formas mais ‘sérias’, trocando o mundo narrativo por um estilo e gênero mais discursivo.



[1] O que o autor defende na página 215: que é a derrota, e não a vitória, que aguarda o herói, e entender isso já é uma virtude, faz parte da própria coragem. Sem maior aprofundamento, ele segue para descrever como se daria a caracterização de uma virtude.

[2]Nas palavras de MacIntyre, “o épico e a saga certamente não são simples imagens refletidas da sociedade que afirmam representar, pois está bem claro que o poeta ou o escritor de sagas reivindica para si uma espécie de entendimento que é negado aos personagens sobre os quais escreve. O poeta não sofre as limitações que definem a condição essencial de seus personagens.” (p. 216). Uma justificativa que ele utiliza para isso é a de que as expressões normativas utilizadas pelas personagens são empregadas mutuamente e são totalmente interdependentes em sua explicação. É essencial que para compreendê-las se esteja ciente do contexto de todas elas, e que por causa dessa circularidade as personagens do épico não seriam capazes de encarar sua própria cultura e sua própria sociedade como se estivessem fora dela. Não teriam o vocabulário para tanto, mas aparentemente o poeta tem. As personagens só são capazes de fazer escolhas a partir da de dentro da estrutura em que se encontram, mas não sobre qual estrutura e nem para além dela, um privilégio que o autor não deixa claro se existe ou não para o poeta.

Então, tendo feito estas observações, acredito que MacIntyre tente afirmar sim que os poemas heróicos não seriam compreendidos, ao menos nas partes em que se perceberia a consciência do poeta, pelas pessoas da própria era heróica. Então se poderia dizer que esta consideração de MacIntyre sobre o afastamento do escritor épico, tanto do poema quanto da estrutura da sociedade heróica, significa algum grau de distorção do passado heróico, com compreensões de uma época que seria posterior.

[3] O autor defende que o formato épico ou de saga é o único que comporta o relato da vida das personagens homéricas porque esta seria a forma que suas vidas se apresentam. Esta forma de apresentação seria a de uma sucessão de incidentes em que a única possibilidade de compreensão se dá por uma longa narrativa. E ainda este relato de sucessão de incidentes é a única maneira de representar o caráter, o modelo de vida e as virtudes dos personagens, pois qualquer modelo ético, qualquer virtude heróica, só pode ser absorvido, compreendido e seguido por meio de exemplificações. Por conta disso, a virtude da coragem não pode ser compreendida de outra forma que não por meio de exemplos de atos de coragem continentes nos épicos – que se propõe a descrever uma sucessão de fatos que formam a vida das personagens.

Dessa forma MacIntyre afirma que, “se tais sociedades existiram, só poderiam ser adequadamente compreendidas por meio de sua poesia” (o que é estranho quando esta informação se confronta, logo adiante, com a afirmação do autor de que a época descrita pelo épico não corresponde à época do poeta, enquanto este é capaz de informações e concepções privilegiadas em relação às personagens). Neste ponto MacIntyre limita-se a afirmar e não há outras formas de defesa sobre esta sua afirmação no capítulo. Tampouco o autor confronta sua idéia com qualquer outra diferente. Talvez seja possível considerar que a própria compreensão de uma narrativa épica abarque as outras formas de narrativas, uma vez que os épicos heróicos descrevem vidas e sociedades inteiras, e estas apresentariam de alguma forma e em algum momento episódios de comédia, romance, drama etc. Todavia este questionamento acerca da possibilidade de outras formas narrativas não é debatido a fundo neste capítulo, e para acrescentar maiores questionamentos e possíveis respostas precisarei buscar outros autores, dentre eles a contraposição de Hayden White e de Joseph Campbell.



Mais comentários podem ser adcionados ao final da postagem, com questões a respeito dela.

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