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Kitto - Tragédia Grega, Estudo Literário. Vol. 1. Cap III p. 125-177

Kitto, H. D. F. Tragédia Grega. Estudo Literário (I Volume). Trad.Dr. José Manuel Coutinho e Castro. 3ª ed. Coimbra: Editora Arménio Amado, 1972, p. 125-177. Capítulo III – A Orestéia: 1- Agamêmnon, 2- Coéforas, 3- Eumênides.

Resumo: Apresenta interpretações das três peças que compõem a Orestéia, de Ésquilo a partir de um debate com outras compreensões e com a mitologia correspondente.

Resumo Analítico/Esquema:

1) Agamêmnon:

1. Problematização das divergências entre o drama clássico e moderno, o que estabelece as razões pelas quais se apresentam dificuldades na compreensão da Orestéia.

a. Proposta: deve-se buscar a compreensão do que Ésquilo pretendia com os aspectos a priori confusos e estranhos de sua obra, ao invés de considerá-lo com indulgência, estabelecendo as estranhezas como alguma deficiência do autor.

2. Divisão sobre o conteúdo de Agamêmnon: a primeira peça da trilogia apresenta diversas histórias relatadas em conjunto, e são elas sobre a Casa de Atreu, Ifigênia, a Guerra de Tróia, Cassandra e o duplo assassinato.

a. O relato na tragédia não é da forma obvia, não segue a mesma ordem dos acontecimentos relatados. Ésquilo não apresenta na tragédia os fatos pela ordem em que se sucederam, vê-se que a maldição da Casa de Atreu é revelada somente ao final, nas palavras de Egisto. Tampouco a história parece dar-se sobre a maldição, pois a trilogia possui um final que não coincide com o encerramento dela.

b. A primeira história comentada na peça é a do rapto de Helena por Páris. De inicio não há qualquer ligação desta história com a maldição dos átridas, mas se pode imaginar que Ésquilo tinha a intenção de aproximar ambas as histórias, bem como seus fins trágicos. Há também a aproximação de duas histórias que culminam em um final trágico por conta da presença e morte de Cassandra.

3. O Vigia: nele Ésquilo constrói uma personagem viva, um soldado que conta seu dever de esperar notícias sobre o fim da guerra. Ele também revela que há problemas no palácio, pouco antes de receber o sinal do regresso do rei.

a. A luz do navio liberta o vigia de seu trabalho árduo, e faz-se a alusão da luz que liberta o homem da miséria representando esperança (que afinal se revelam como falsas esperanças). A relação se repete no momento em que as Eumênides são levadas à Atenas com uma procissão de archotes.

4. O Arauto: quando traz a notícia sobre o retorno de Agamêmnon também faz relações de que há algo que não vai bem no palácio.

5. A ode (Coro): a primeira ode fala da vingança orientada por Zeus aos troianos, que leva Agamêmnon e Menelau para vingar Páris. Em seguida, já na segunda ode, fala-se do presságio das duas águias que atacam uma lebre prenha, bem como a revelação do vidente, de que seria necessário um sacrifício à deusa Artémis para que a guerra pudesse ocorrer. Já a terceira ode refere-se à cumplicidade dos troianos no crime de Páris, sendo isto a causa do castigo da cidade. A morte dos gregos na guerra, de início, é colocada como morte de inocentes e a culpa destas mortes é posta sobre Agamêmnon. Neste mesmo trecho o Coro revela o temor de que algum cidadão venha a tentar contra a vida do rei.

a. Ocorre uma alteração do mito, em que a ira de Artémis era causada pelo próprio Agamêmnon ao abater um dos veados da deusa e gabar-se disso. Ao invés disso, Ésquilo torna a causa da ira a própria guerra que ainda não ocorreu, mas que representará a destruição cruel e impensada da vida. É uma ira contra s águias, que neste caso representam o próprio Zeus, bem como os dois generais, Agamêmnon e Menelau.

b.
A divergência entre Artémis e Zeus não é algo que abale de alguma forma a autoridade de Zeus, mas que na verdade a confirma. O sacrifício imposto pela deusa é, em ultima instância, previsto e guiado pelo próprio Zeus. A disparidade de conduta de Zeus e Artémis não é sem sentido, pelo contrário, revela que os deuses não deixam passar um derramamento de sangue, ainda que ele próprio seja levado adiante por conseqüência de outros atos que ofendam aos deuses.

6. O sacrifício de Ifigênia: é o próprio símbolo da destruição irrefletida na guerra e é a conseqüência direta da campanha de Agamêmnon sobre ele próprio. É também por causa deste sacrifício que o assassino do rei torna-se não qualquer cidadão, mas sua própria esposa.

a.
O sacrifício de Ifigênia faz uma ligação entre ambas as histórias da Guerra de Tróia e da maldição dos átridas.

7. A terceira secção: é dedicada à Zeus como aquele que orienta toda a ação dos homens através da lei do aprendizado causado pelo sofrimento. Coisa que não era possível aos homens quando sob a égide dos deuses antecessores de Zeus.

8. A relação entre a ação dos deuses com as conseqüências dos atos dos homens.

a. Os agentes humanos são autônomos (tal como estabelecem também Sófocles e Eurípides). “Quando a mesma ação é atribuída tanto aos deuses quanto aos homens, o efeito é de contemplar como se tratando de uma ação individual [proveniente dos homens] que tem a natureza de uma ação universal [proveniente dos deuses]” (p. 136).

i. Exemplo: o início e o fim da Guerra de Tróia são igualmente atribuídos a Zeus e Agamemnon, no entanto no decorrer da tragédia a guerra é considerada em termos políticos como especificamente um erro de Agamêmnon (e não de Zeus).

b. Posição diferente de Page: os agentes humanos são guiados por Demônios (poderes irracionais) tais como Tentação e Esperança, e por conta disso não respondem às suas ações. Kitto contrapõe-se a esta idéia traçando paralelos com a tragédia de Ésquilo e busca comprovar que o autor entendia que às personagens cabia culpa e responsabilidade por seus atos.

i.
Percebe-se a censura contra Páris pro deixar-se guiar pela Tentação (peithó).

ii.
Estabelece a vingança de Clitemnestra como pessoal e guiada por motivos egoístas/particulares.

iii.
Agamêmnon aceita defender a honra (timé) de seu irmão por conta do rapto de Helena – uma mulher impura, levantando uma guerra vista como desproporcional. E esta defesa da honra é o entendimento de justiça (Dike), tal como o entendimento do próprio Zeus.

9. O conceito de Dike: neste início da peça justiça revela-se como a retribuição da violência. Toda a trama desenvolve-se nestes termos, até seu próprio colapso, que culmina com o colapso de todo o sistema colocado para a Dike.

10. A primeira ode de Clitemnestra: desde as palavras do Arauto já se constrói o perfil da rainha, a vingadora designada pela morte de Ifigênia, num plano, e pelas mortes dos gregos noutro.

a. Clitemnestra refere-se à rede de Zeus sobre a cidade, que cobrirá a todos até a total destruição. Dessa forma inicia uma sugestão da proporção dos atos dos homens e de suas conseqüências.

b. Primeiro: faz um paralelo entre o fogo que denuncia a volta do rei com o fogo que cobriu Tróia. Ela lembra a necessidade que há em poupar os templos, os locais sagrados, da destruição, pois ainda há a necessidade de voltar a salvo para casa (coisa que não foi observada pelos gregos na Guerra de Tróia).

c. Segundo: fala de Páris, que sucumbiu à Tentação (e à hybris) e por conta disso levou a destruição à Tróia.

d. Terceiro: fala de Helena, que pelo seu pecado levou guerra e luto à Grécia.

e. Quarto: fala da raiva aos reis que fizeram a guerra por orgulho e pela esposa de outro homem.

11. Epodo: três participantes do Coro duvidam de Clitemnestra e de suas notícias sobre a vitória contra Tróia, e dessa forma sugerem que a rainha esteja louca.

a. A necessidade dessa fala ocorre para revelar algo sobre Clitemnestra. Essa dúvida não deixa o ato incompreensível (pois já se tem claro que as informações são verdadeiras), os três integrantes do Coro, separados dos demais, constituem outra persona diferente do Coro completo, e que por isso pode trazer falas conflitantes com as demais feitas pelo Coro.

12. Outra fala do Arauto: ele comenta a destruição de Tróia desde sua origem, ou seja, desde os templos, ao passo que se alegra com a vitória que livrou os gregos da Guerra. É uma fala que trabalha com um dos sentidos das luzes falsas que libertam o homem, e também revela uma resposta à fala de Clitemnestra a respeito de não se dever destruir os locais sagrados.

13. A segunda ode de Clitemnestra: primeiro volta-se contra o Coro por tê-la chamado de louca, depois se dirige ao marido para lhe dar falsas boas vindas, e com isso o caráter da rainha ganha contornos.

14.
A resposta do Arauto revela que somente o navio de Agamêmnon chegou a cidade e descreve o fim que sobreveio ao exército grego no trajeto de volta à Grécia. Assim é permitindo compreender sua destruição das hostes gregas como conseqüência de executarem a destruição dos templos.

a. Apenas o navio de Agamêmnon retornou, a salvo, para Clitemnestra.

b. Novamente a narrativa traz a proporção dos atos dos homens e de suas conseqüências, ao passo que a fala do Arauto encerra comentando os atos de Agamêmnon.

15. A terceira ode de Clitemnestra*: faz a relação entre os cantos de boas vindas e de núpcias dados pelos troianos à Páris e Helena, com os gritos de lamentação e luto com a destruição da cidade.

16. A chegada de Agamêmnon, acompanhado de Cassandra, é seguida de uma fala do Coro sobre seus anseios pelo risco que o rei e sua escrava sofrem em Argos, mas o temor recai não sobre Clitemnestra, mas em cidadãos desconhecidos e o descontentamento deles a respeito da guerra.

17. O tapete vermelho: Agamêmnon não percebe a falsidade e a ironia em Clitemnestra e cede à sugestão dela de caminhar sobre a riqueza e a beleza das coisas sagradas, tal como Páris fez.

18. O silêncio e a fala de Cassandra:

a. Mesmo quando Clitemnestra retorna do interior do palácio e dirige-se diretamente a ela, Cassandra não responde e parece alheia a todos. O Coro chega a sugerir a necessidade de um tradutor, pois o silêncio deixa tanto ele quanto a rainha desnorteados. Esta atitude de Cassandra também é tomada como uma forma de vitória sobre a própria rainha.

b. Tão surpreendente quanto o silêncio, as palavras de Cassandra não são para nenhum dos presentes, mas volta-se a Apolo. Ela revela sua culpa por ter aceitado o dom profético e em seguida ter negado a ele e ao deus. Revela também que sua vinda à Argos e a conseqüência de sua morte são obras de Apolo, em transe prevê tanto seu fim quanto o de Agamêmnon.

19. O grito de Agamêmnon e a revelação de sua morte causam confusão e perplexidade no Coro, que acaba dividindo-se a respeito do que aconteceu e do que devem fazer. Ele nega a previsão de Cassandra até o momento em que Clitemnestra se revela como assassina e diante do palácio justifica seus atos.

a. A passagem da confusão do Coro, bem como o fato de negarem à profecia de Cassandra são elementos que destacam a ignorância dos homens sobre a ordem divina e os desígnios de Zeus.

b. O fim de Agamêmnon é reiteração da Dike como manutenção dessa ordem de Zeus, proporcionada tanto por deuses quanto por homens.

20. A maldição da Casa de Atreu – é primeiro revelada por Clitemnestra, em seguida por Egisto.

a. Clitemnestra conecta o daimon dos átridas à Guerra de Tróia, bem como estabelece os feitos que se sucederam até então como exemplos da Dike e da vingança como manutenção de justiça.

b. Egisto demonstra sua natureza covarde e mesquinha apropriando-se da vingança de Clitemnestra como sua própria.

21. O ponto culminante da obra: nas palavras de Egisto se expõe a ordem de Zeus, e o deus como a causa de todos os acontecimento, desde a vingança de Atreu sobre Tiestes, Clitemnestra sobre Agamêmnon, Apolo e Clitemnestra sobre Cassandra, mas também a causa das mortes que ainda estão por vir. Finalmente a natureza de Dike e a rede de Zeus são reveladas.

a. Assim, a Dike é mantida pelos atos dos homens, ainda que provenha de um homem sem qualquer virtude, como no caso de Egisto.

b. Nesta fala de Egisto também identificam-se metáforas usadas por toda a peça, reforçando a semelhança dos fatos descritos por toda a narrativa:

i. Os atos de vingança ocorridos no palácio e o trabalho das Eríneas vistas por Cassandra, ambos relacionados com a própria guerra – visto que Agamêmnon foi enviado por Zeus “como uma Erínea” para vingar-se de Tróia.

ii. O revide de Egisto é comparado pela aplicação do mesmo adjetivo dado à “barra de ferro de Zeus”, usada por Agamêmnon para destriur Tróia, aproxima os dois atos de vingança como possuindo a mesma natureza.

iii. O uso de “rede” para se referir à túnica tecida pelas Eríneas repete-se na rede de Zeus jogada sobre Tróia pelas mãos de Agamêmnon e a rede de morte que Cassandra vê sendo utilizada por Clitemnestra contra o rei.

c. Os versos de Egisto são considerados o clímax da peça (no lugar de ser a morte de Agamêmnon e Cassandra) porque revela em menor escala o que acontece por toda a tragédia e o que ela pretende demonstrar – que existe uma ordem cósmica designada por Zeus e é ele que, em ultima instância, é o responsável pela manutenção dela. A própria justiça está na manutenção desta ordem designada por Zeus, que é estruturada pela lei do aprendizado com o sofrimento e da justiça, conseqüência e retribuição por meio da vingança.

22. O estabelecimento da tirania de Egisto e Clitemnestra é relacionado ao próprio caos alojado em Argos e percebido na peça. Traz a compreensão de que a própria tirania é um governo não permitido por Zeus, pois se mantém pelo desrespeito à lei divina. O herdeiro e sucessor de Agamêmnon foi enviado para o exílio.

2) Coéforas:

1. Orestes, como previu Cassandra, tem a tarefa de vingar a morte do pai (“A lei da Dike é eterna), e que a vingança ocorrerá está claro, só que não se sabe como. A Coéforas traz também uma novidade, Orestes, pela primeira vez na narrativa, constitui um vingador com motivos puros.

a.
O sonho de Clitemnestra: indica que a vingança é iminente, e também que não é “uma exploração pessoal ou um crime” (p. 151), e sim um ato de justiça guiado pelos poderes ocultos do universo.

b. Pagar aos inimigos com o mal é a ética normal dos gregos. Durante o diálogo entre Electra e as Coéforas, ela altera a forma que era utilizada em Agamêmnon para se referir ao agente da vingança (“executor da retribuição” – vingador) para “juiz” ou “jurado”. A oração que as personagens demonstra a situação geral do palácio, das riquezas, do governo tirano e dos herdeiros legítimos.

c. A pureza dos vingadores: Electra e Orestes são revelados como portadores de coração puro e mãos limpas, com propósitos unicamente justos de cumprir e manter a ordem de Zeus. Um cumprimento que, por sua vez, não tem outra forma de ser feito se não pelo matricídio, é o pior assassinato e não ocorre em Agamêmnon.

2. A cena de reconhecimento: ressalta-se que a verdadeira cena de reconhecimento se dá com a revelação de Orestes de seu esconderijo para apresentar-se à irmã. A cena que envolve Electra encontrando as mechas de cabelo e a pegada de Orestes não contribui com o enredo, não tem essa finalidade, e sim fornece parâmetros do estado emocional de Electra: sua angustia que a leva a ver sinais impossíveis da presença do irmão. Prova disso é o momento em que Orestes se apresenta e ela tem dúvidas sobre a sua verdadeira identidade.

a. Aqui se percebe as mudanças de tom nas referencias a Agamêmnon. De uma peça para a outro, transforma-se de louco e impiedoso para tornar-se o rei glorioso e corajoso, que afinal venceu a guerra mas acabou assassinado de forma abominável.

3. A oração de Orestes é voltada a Zeus fazendo referencias que já foram apresentadas na peça anterior, como a águia (símbolo de Zeus e dos reis-generais), a vingança dos gregos, a ira de Artémis etc. Esta repetição vem demonstrar mais uma vez a inevitabilidade da vingança e traz a previsão de que efetivada a retribuição à Clitemnestra, Orestes acabará no lugar da própria rainha – compartilhará o destino de ser abatido pela Dike.

a. É evidente referencia à interferência direta de Apolo sobre a ação de Orestes. Até este momento as ações dos deuses tem se mostrado coincidente com ações humanas, mas neste caso Apolo dá uma ordem diretamente a Orestes.

b. Mas apesar da ordem de Apolo, Orestes segue deixando claro que a decisão de cumprir coma vingança é sua própria escolha (verso 297) e que a faria independente de qualquer ordem divina (p. 157).

c. A mudança de atitude dos deuses, que passam a ter ações próprias durante a narrativa, está preparando a peça para levar a presença divina de um segundo plano para um primeiro plano.

d. Ocorre o duplo impulso à vingança – um proveniente de Apolo e que funciona como demonstração do que são as exigências trazidas pela situação; e um proveniente de Orestes, este compelido por sua própria vontade e pelas suas razões (a dor de seu pai, sua própria pobreza no exílio, a submissão de seu povo à tirania de assassinos etc.). Ele age sem deixar de ser autônomo e racionalmente motivado.

4. É importante destacar que o kommos (versos 304-478) não trata mais de delinear as personagens, nem constitui forma de incentivar Orestes ao ponto em que se encontrará preparado para executar a vingança. Orestes já está decidido, desde o princípio, a dar continuidade à lei da Dike.

a. Independente da pureza dos motivos de Orestes, o destino traçado para ele é escuro e sombrio. Há no kommos a sugestão de que a ordem de Zeus está perturbada em seus pressupostos e a única esperança (luz) está na promessa de proteção de Apolo sobre Orestes.

5. O sonho de Clitemnestra, descrito pelas Coéforas, revela uma serpente que ela deu a luz e a mordeu durante a amamentação. Orestes toma para si a imagem da serpente do sonho da mãe, e de certa forma acaba comparando-se a ela, pois a descreveu como a serpente que matou uma águia (verso 248). É uma comparação que demonstra e reitera que Orestes deve repetir o feito da rainha.

6. A presença da Ama não é um traço cômico dentro do trágico, mas sim é o elemento que permite comparar as reações e atitudes de Clitemnestra para com o filho, bem como sua falsidade quando recebeu notícias de que Orestes havia morrido. É a Ama que fica responsável por levar a mensagem a Egisto, sendo persuadida pelo Coro a alterar o conteúdo da mensagem e fazer com que Egisto apresente-se só e sem guarda.

a. A forma escolhida por Orestes para executar sua vingança foi o uso da astúcia, exatamente o mesmo artifício empregado no assassinato de Agamêmnon. A aproximação de Orestes com o anúncio de sua morte e o engano usado contra Egisto para deixá-lo desprotegido são a demonstração forte dos modos da Dike – leva a perdição aos assassinos da mesma forma que mataram (versos 556 e 887).

b. A interferência incomum do Coro, a Ama e o Escravo são personagens que ressaltam o isolamento moral em que se encontram Clitemnestra e Egisto. Sabem o que os dois fizeram e esperam que sejam punidos.

c. Já a Ama faz um contraste direto com a rainha. A primeira é a mulher que se dedicou verdadeiramente à criança e sofre com a notícia da morte de Orestes, e a segunda – a mãe – alegra-se com o fim de seu filho.

7. O confronto de Orestes com Clitemnestra: pela primeira vez na peça a natureza e o horror do matricídio é bem explorado e experimentado pelo público e por Orestes.

a. Pílades, o amigo de Orestes, a quem se espera o silêncio de um ator excedente (p. 162), traz poucas palavras inesperadas – que pelo efeito de não serem previstas soam forte e revelam a terrível situação de Orestes.

b. O diálogo que se segue entre Orestes e Clitemnestra é rico. As refutações de Orestes à mãe demonstram a inevitabilidade do destino dela, e, por conseguinte, trazem a imagem primeiro de forma implícita (depois explicitamente, nas falas de Clitemnestra) o mesmo destino reservado à Orestes.

c. Este confronto demonstra claramente a natureza do sistema cósmico da atual ordem de Zeus e a lei da Dike, e eleva o caos causado pela forma de justiça efetivada na violência e na vingança.

d. Novamente ocorre um duplo assassinato. A cena da exposição dos dois corpos no final das Coéforas traz paralelos à cena semelhante em Agamêmnon, tanto na forma quanto na fala. Mas as próprias semelhanças carregam as diferenças, Orestes desvenda à luz do Sol suas vítimas, a verdade sobre elas e sobre si próprio.

e. A justificação pelo duplo assassinato em Agamêmnon ocorre após as execuções, enquanto que na segunda peça a justificação antecede as mortes.

3) Eumênides:

1. A terceira peça da trilogia destaca-se pelo espetáculo impressionante que faz. Logo nas primeiras cenas vê-se Apolo personificado, as próprias Eríneas adormecidas e a imagem assombrosa do fantasma de Clitemnestra.

a. Clitemnestra tem a fala autoritária e é capaz de comandar as Eríneas de volta à perseguição de Orestes. Apresenta-se ainda mais assustadora na morte do que era em vida.

b. Apolo aparece no templo, depois de forçar o sono nas Eríneas, para expulsá-las de lá. Na sua fala, tal como o horror da Sacerdotisa, o deus demonstra toda a repugnância e o desdém que as Eríneas causam a quem as vê.

2. Em Eumênides é evidenciado o conflito entre as divindades – um conflito profundo e até o momento sem vislumbre de solução – que faz parte do próprio caos em que se encontra a ordem de Zeus. Demonstra-se abertamente desde o início da terceira peça o conflito de deuses, de justiças e entre períodos diferentes. Zeus é representado por Apolo, e sua vontade está sempre pressuposta nas ações dos deuses do Olímpio, e as Eríneas se fazem como deusas da antiguidade, protetoras e pertencentes à ordem cósmica anterior ao reinado de Zeus.

a. Apolo segue o comando de Zeus, tal como todos os deuses do Olímpio, apresentando-se em harmonia. Mas contra eles e contra a ordem de Zeus, as Eríneas defendem as antigas instituições da Dike e da Moira (a justiça e o destino). Elas acusam os deuses mais novos de agredirem a ordem das coisas.

b. O uso das Eríneas, no entanto, nas duas primeiras peças, é bem diferente. Elas aparecem sob o comando de Zeus diversas vezes, Zeus envia Agamêmnon como uma Erínea contra Tróia e Apolo faz uso delas para consolidar o castigo de Cassandra. A princípio parece uma grande inconsistência, mas a situação merece questionamentos:

i. Primeiramente, ressalta-se que as Eríneas da ultima peça são as mesmas Eríneas das anteriores, são as mesmas em sua aparência, natureza e função (p. 169). Elas representam a justiça por meio da vingança cega e automática – e por isso irracional.

ii. Na tragédia Eumênides as Eríneas são de Clitemnestra, seguem suas ordens e sua vontade, mas são também as Eríneas que tem o dever geral de cumprir a Dike e a vingança pelos atos horrendos. Por isso mesmo deve-se pressupor que a transformação das Eríneas em Eumênides no final da trilogia abarca todas elas, e não apenas àquelas que se incubem de exercer a vingança de Clitemnestra.

c. Em Agamêmnon, os novos deuses e as Eríneas podem ser harmônicos e trabalhar em conjunto porque ambos estão em estado primitivo, possuem um “sistema comum de justiça” (p. 170). E é por isso mesmo que se instala o caos neste sistema de Dike, seu caráter primitivo, que culmina no matricídio cometido por Orestes.

d. A alteração de posição dos deuses olímpicos também demonstra o que a lei de Zeus quer buscar e a que se refere com relação ao aprendizado por meio do sofrimento (o que não está ocorrendo em meio ao caos, que resulta apenas no sofrimento). Os deuses sob a égide de Zeus são capazes de perceber o dilema de Orestes, enquanto as Eríneas não. Para elas é natural que ele seja morto pelas Eríneas, sejam as da mãe, sejam as do pai – porque esta é a ordem das coisas.

e. A cisão entre Zeus e os deuses do Olimpo com as Eríneas sugere que Zeus pretende dar fim ao caos que permitiu o final da tragédia de Agamêmnon e o matricídio; ainda que isto leve a medir forças com os deuses antigos e exija a criação de novas leis, modificando a ordem das coisas. A vontade divina de impor ordem aos caos é explícita.

f. Já na primeira metade da peça as posições das divindades são delineadas: os deuses olímpicos estão, “com sinceridade e parcialidade” (p. 171), a favor do rei e do pai (a figura de autoridade), bem como a favor de Orestes (a representação da pureza de propósito), sob guia e proteção de Apolo; já as Eríneas seguem a favor da mãe, exigem o cumprimento de leis antigas e sagradas ressaltando que independente dos motivos Orestes cometeu o mesmo crime que vingou (e ainda pior), e por isso deve sofrer também do mesmo mal.

3. Na segunda metade da peça destaca-se Atena. Sua atitude distingue-se do que foi visto até então de Apolo e das Eríneas.

a. Atena corrige Apolo nos atos. Não se opõe abertamente contra as Eríneas e as trata com cortesia e imparcialidade, contrastando com a repúdia e o desdém de Apolo. É essa alteração de atitude que é torna possível uma conciliação, e é por isso que as Eríneas permitem se colocar sob a arbitragem de Atena.

4. O julgamento de Orestes.

a. Os argumentos das Eríneas e os argumentos de Apolo:

i.
A defesa de Apolo a Orestes se dá pelos fundamentos dos atos que levaram ao matricídio. O deus protege os laços matrimoniais, colocando-o como base da sociedade.

ii.
A acusação das Eríneas não releva qualquer fundamento, o ato do assassinato é para elas condenável por si próprio e merecedor de retribuição. As deusas defendem os laços de sangue, estabelecendo o parentesco da vítima como o fator mais grave da conduta de Orestes.

b. O resultado do júri revela que ambas as partes estão, na metade dos votos que lhes foram dadas, parte corretas e parte erradas.

i. O incontestável no argumento das Eríneas é que o assassinato do pai e da mãe, bem como o ultraje ao hóspede, não podem ser passados sem castigo – o temor do castigo não pode desaparecer.

5. O ponto culminante da peça não culmina com a absolvição de Orestes, mas sim com a reconciliação entre as divindades.

6. A participação de jurados humanos no julgamento aproxima a condição das relações entre o humano e o divino, que se faz presente desde o início da trilogia.

a. Os deuses não fazem pressão sobre os votos dos homens como se vê ocorrendo com as ordens do fantasma de Clitemnestra sobre as Eríneas.

b. A situação da humanidade é o que está em jogo no julgamento, e é a ela que mais interessa seu resultado. Por isso os homens devem tomar parte na decisão e adquirir responsabilidade pela escolha.

c. A proporção dos votos, iguais para os dois lados, demonstra também que o único resultado satisfatório para o caos e o julgamento só pode vir de uma conciliação. Ambas as partes defenderam questões que deveriam e devem continuar sendo defendidas.

7. A instituição divina do Areópago é implantada por Atena sob as ordens de Zeus. Também é por meio da deusa que são levados aos homens a Razão e a Tolerância, capazes de possibilitar um julgamento imparcial e de dar a devida razão para ambas as partes.

a.
O Areópago é construído como instituição da ordem sobre o caos, sobre a violência, a anarquia e o despotismo, personificando, por fim, uma nova Dike. A Ira dá lugar à razão por meio do tribunal, e molda com isso uma Justiça guiada pela racionalidade.

8. A progressão de Zeus: da violência e da confusão (das Eríneas como agentes inquestionáveis da Dike), para a interferência arbitrária (de Apolo) que enfurece as Eríneas, e então para a razão, tolerância e clemência (de Atena), deixando as Eríneas ainda mais indignadas.

a.
É proposta às Eríneas uma nova forma de levar a Dike, de maneira que os privilégios de a executarem não serão mais infringidos, mas pelo contrário, terão seus poderes ampliados.

b. A Clemência e a Razão são afirmadas, mas o temor do castigo não é discutido nem retirado, mantendo-se reconhecido como necessário e permanente, mas com os contornos da nova ordem e justiça, inseridos na pólis.

c. É pelo uso da razão que as Eríneas tornam-se Eumênides e aliadas à nova Dike, que por meio do Areópago encontra-se nas mãos dos homens.

9. O protesto de Ésquilo transparece na última peça da Orestéia. Ele se dá sobre e contra as formas de violência irracional e irrestrita, tal como contra o despotismo e a anarquia. Sua conclusão é de que a pólis que reverencia a Dike – a Justiça desta nova ordem implantada por Zeus – não conhecerá a ira das Eumênides.

Mais comentários podem ser adcionados ao final da postagem, com questões a respeito dela.

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Hamlet and Orestes Hamlet and Orestes Bibliografia: KOTT, J. Hamlet and Orestes . Trad. Boleslaw Taborski. In. Publications of the Language Association of America . Vol. 82, No. 5, 1967, p. 303-313. [1] Esta será uma série composta de quatro postagens a respeito do artigo “Hamlet and Orestes”, escrito pelo teórico e crítico polonês de teatro Jan Kott. A divisão das partes aqui usada é a que foi feita pelo próprio autor, nas quais discute: (I) A tragédia como situação, os mitos sob a leitura de Lévi-Strauss, os conjuntos que a tragédia contém, a liberdade e o destino do herói trágico; (II) A comparação das histórias que antecederam as tragédias da Orestéia e de Hamlet, as diferentes versões de Hamlet e de Orestes, a estrutura básica do enredo de Orestes e de Hamlet, as previsões duplas e a relação entre passado, presente e futuro nas tragédias; (III) A dupla imagem do rei na tragédia – como parte interna e externa da sociedade - e a movimentação dos heróis trágicos – as personage

A DUPLA MOTIVAÇÃO ENTRE ÁGAMÊMNON E ZEUS NO SACRIFÍCIO DE IFIGÊNIA

Segue abaixo o meu ensaio produzido para a matéria, Mito e Engano: a Ate na Ilíada, acompanhada na pós-graduação de Letras Clássicas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. INTRODUÇÃO No presente trabalho pretendemos analisar com brevidade o fenômeno da dupla motivação presente nas ações de Agamêmnon na tragédia de mesmo nome, primeira da trilogia da Orestéia, de Ésquilo. A passagem referente ao presságio das águias e da profecia reveladora de Calcas, em conjunto com os contornos do sacrifício de Ifigênia, tal como apresentados por Ésquilo, servirão de fundo para o estudo deste fenômeno construído na tensão entre determinação divina e autonomia das ações humanas. Agamêmnon, general do exército e sob o titulo do rei dos reis, reúne os gregos para a guerra contra Tróia. Está sob o juramento de seu cetro e deve seguir com a Justiça de Zeus pela vingança contra Páris e todo o povo de Príamo. Contudo se encontra incapaz de prosseguir, preso no porto de Áulida. Ártemi